terça-feira, 20 de julho de 2010

Primeiros fragmentos - Inverno

Inverno

Cena !

Atriz entra em cena vestida numa capa de chuva. Pendura numa “arara” ao fundo do palco...


Atriz – Cada vez que acordo, um temporal. Se não temporal... a eminência de um. Quando eu acordo... pode até estar sol... Quando eu acordo o tempo fecha, o vendaval se arquiteta. “Pum”. É assim: Pancada. Acredite. E não é pro conta do meu humor. Meu humor é ótimo. O meu humor é... é... meu humor é... eu sou agradabilíssima. Não tem haver com humor. Tem haver comigo... E com o meu sono. Quando eu durmo sai sol. Pode ser... por exemplo, uma e meia da madrugada que basta eu fechar os olhos e lá está, sobre a minha cabeça, um bruta sol rasgando a escuridão da noite. Mas eu nem me importo com isso porque... porque eu tenho blecaute nas minhas pálpebras.(pausa) Vocês não imaginam. Há veneno no meu sangue. Fui proibida pelos médicos... e juízes de colocar os pés para cima. Os juízes acreditem... e olha que eu levei essa ação até o supremo tribunal federal... Eles, os juízes, consideraram que ao colocar os pés para cima meu sangue poderia parar na cabeça culminando no envenenamento da mesma, podendo levar a óbito... Sim... No meu caso levantar os pés significa executar um crime contra a vida! “Está na constituição”, disseram-me. (pausa) Quando acordo é sol. Se abro os olhos... chuva. Se abro apenas um único olho o tempo fecha. Se abro os dois é chuva certa. Algumas pessoas que dormiram comigo, ao perceberem isso saíram correndo... e nunca mais voltaram (ri). Engraçado né? A dor é fermento. Consegue perceber?


Cena @

Atriz – Vocês já ouviram falar em Tsunamis? A minha vida emocional começou assim. Ele disse “adeus” e foi um afogamento sem fim. Aí já viu né? Muito “glub glub” até que resolvi mostrar meu talento para a natação.

Cena _

Atriz – (Toca o telefone. Ela atende)Fala! Que eu não apenas te escuto como também falo com você! Aliça Anderson, melhor que o CVV, Vinte e quatro horas pronta pra te atender. Boa noite em que eu posso ajudar? An? Aham... Não gata.. primeiro: se você pular da janela... como eu posso dizer... você vai virar um presunto horroroso e estourado. E segundo: A melhor coisa a fazer é superar o bofe meu amor e se jogar... A superação é a maior dor que eles podem sentir (é interrompida)... o que? Não dá? Mas por quê? Ãn? Ãn? O quê? Aham... (tempo) Que bom que está melhor. Precisando... (desliga o telefone e chora desesperadamente).

Sai de cena. Entra vestida numa capa de chuva. Pendura no fundo do palco


Cena #

Atriz – Na verdade é muito difícil explicar o que aconteceu. São meses, anos, uma vida... e tudo, de repente, vai com a chuva ladeira abaixo até encontrar um bueiro qualquer... Quem já havia olhado nos meus olhos podia perceber a diferença, entende? É como se ele houvesse me deixado e eu, inconformada, tivesse ido a beira da loucura, como se meu olhar se esvaziasse e se perdesse, esvaziasse e se perdesse, esvaziasse e se perdesse. Mas não. Fui eu quem foi embora dizendo que não havia amor que resistisse àquele temporal. Eu fui embora porque ficar era morte certa. E ir embora era morte quase certa. E eu fui embora. Pra que pelo menos um de nós se salvasse. E ele se salvou. Se agarrou no primeiro pedaço de madeira que viu, um pedaço de madeira podre, cheio de bichos, cheio dos fungos das mentiras e dos desdéns. Ele se segurou num monte de coisas podres e se salvou... E eu... eu é que fiquei a deriva, em alto mar. Esse mar imenso que são os meus olhos. Eu queria que chovesse... Eu queria que chovesse uma chuva dessas que lava tudo. Mas só chove essa chuva de todo dia. Eu sou do tempo... Eu sou do tempo em que a chuva... a chuva lavava... Hoje em dia a chuva suja. A chuva de hoje é ácida e quando cai... meu corpo acha que são lágrimas e quando vejo eu estou em alto mar de novo... E de novo o afogamento. Isso aqui meu amor... São Tsunamis... As ondas que cobrem minha alma dizimariam países inteiros. Depois do terremoto meu coração de Haiti entrou em guerra. E não é uma guerra política ou religiosa. É uma guerra de Famintos... É uma guerra que quase se justifica porque é uma guerra contra a fome. Só que nesse caso... A desnutrição é certa e a morte uma constante. Meu coração sofre de inanição, entende? Meu coração sofre de inanição... Meu coração sofre de inanição profunda! Então acordo, abro os olhos e Pum! Temporal. Talvez as tsunamis sejam culpa dessas chuvas que insistem em continuar. Eu preciso de lenços de papel mas... só encontro colírios.
Cena $

Atriz – Hoje me ligaram de manhã: “olá. Já ta acordada?”. “To sim.”, menti. “Que ótimo! Porque hoje é meu dia de folga. Então pensei que poderíamos nos encontrar em uma hora na piscina do clube”. “Ok! Te encontro em uma hora lá!”. Desliguei. O telefone... e meu cérebro. 20 minutos depois acordo em pânico: “No clube! Em uma hora? Mas... eu nem sei com quem eu falei!”. E se fosse algum ex-namorado psicopata? Estanhei s olhos como se tivesse tomada uma dose de adrenalina. Mal tive tempo de piscar e “trimmmmmmmmmmmm”... “Alô”. “Oi... Eu liguei pra desmarcar a ida ao clube. É que acabou de começar um temporal”. Imediatamente pensei. “Claro. Eu abri os olhos!” e em seguida disse: “ok. Mas... quem é que ta falando?”. “É o Rubem”. “Rubem? Desculpe mas não conheço nenhum rub... tu tu tu tu tu”, desligou. E... eu... eu não conheço mesmo esse tal de Rubem... Coitado... Pelo jeito mal nos cruzamos e eu já fodi o dia de folga dele. Azarado esse Rubem... Rubem... se você estiver aí ouça bem... Amigo... arranja um pezinho de coelho... pra ver se melhora... mas não esqueça que o pezinho só da sorte se for arrancado de um coelho já morto... e de morte natural hein Rubem. Já morte e de morte natural. Entendeu Rubem?

Cena %

Atriz – Eu continuava a mesma chata de sempre.Talvez um pouco mais metódica do que antes. Com minhas verdades de botequim e os meus sonhos jogados apodrecendo na sala de estar. Mais silenciosa do que nunca. Vontade? Nenhuma. Eu até resolvi correr. Primeiro 2, depois 10 quilômetros. Só que eu corria do nada pra lugar nenhum e de lugar nenhum pro nada. Até que você aparece “abre a cortina” e enche de cor na sala. Maldito “abre as cortinas e olha relva lá fora”, maldito “abre as janelas e deixa molhar e bater sol nos sonhos... que eles brotam”. E sim eles brotam. Sonho de viagem com amanhecer, banho de sol. Maldito “abre janelas”. Mas e agora? Hein? E agora que a janelinha do meu coração ta escancarada? E agora? Hein? E agora que tem um puta rombo nas minhas costelas? E agora? Que o vento ta encanado e virando um vendaval e que ninguém ta percebendo? Não ouviu? agora? Que o vento ta encanado e virando um vendaval e que ninguém ta percebendo? Hein? Hein “abre a cortina? Me responde... Porque é que você foi tocar com delicadeza no tecido leve das cortinas... Os teus dedos, tuas digitais, ainda estão lá... afundados. É como se o cetim e os meus sentidos estivessem (indica que estão interligados)... E aí você escancara os armários e as janelas e eu acordo três horas mais cedo. E eu acordo cada vez mais cedo. Acordo cada vez mais cedo até a hora em que acordarei tão cedo que nem terá dado tempo de dormir e, então, não dormirei mais. Não durmo pela luz que invade o quarto, pelo rombo no peito, pelo vendaval, pelos dedos no cetim. Não durmo você “abre alas que eu quero passar”. Não durmo nem que tape o rombo, nem que feche as janelas. Não durmo nem com tapa olhos e ouvidos.

Cena )

Atriz – É impossível me amar. Sabiam? É impossível me amar. AS pessoas sempre se encantam... “Você é muito talentosa! Parabéns...” E se apaixonam... Mergulham nos meus fluxos profundos e depois se satisfazem. Eu sou uma espécie de puta emocional. Só que sem cobrar. Eu dôo todo meu amor não dado. Eu dôo a minha paciência, o meu chão, os meus amigos. Eu dôo os meus amigos e depois fico sem... fico sem eles pra sempre. Eu dôo a minha saúde, as minhas fraquezas. Eu dôo a minha força e fico mais forte pra salvar você meu amor... e o amor... satisfeito... apunhala o coração por trás. Não há redenção e nem coração que fique sadio. É impossível me amar... é sério. No fim dessa história alguém vai aparecer e você vai achar que eu terei um final feliz. Mas não... eu não terei. É meio difícil aceitar isso... mas são os fatos. (Criando um clima tenso) Ai. Eu.. ai.. eu nem... eu nem gosto de falar disso na verdade... (pausa dupla). Eu não queria falar disso. Porta. Eu sou uma porta, eu sou uma porta! Desculpem... Olha o clima que eu.. Desculpem eu não queria transformar isso nisso. Eu... ai... desculpa. Estraguei a peça... Nossa desculpa... é que eu precisava... ai... vou ficar quieta... desculpem...


Cena &

Atriz – Talvez seja culpa das tsunamis. Sim... a falta de sono. Eu já havia comentado sobre as tsunamis? Sim? Ótimo. As tsunamis são uma constante por aqui. AS vezes é possível ouvir os sons delas. Perguntam-me: “São gazes?” ou “é um bebê?”. Eu digo: “não, não... É só o monte de água que tem no meu coração num dia revoltoso”. Normalmente as pessoas caem na gargalhada. E eu não entendo por que.



Cena *

Atriz – Uma vez... Uma vez... Teve um cara... Vou te contar... Aquele lá brigou por mim. Foi assim... Uns três meses na labuta. Beijinho, carinho, presentinho e prontidão... Bem... Um dia eu cedi. Deixei ele ir até a minha casa, tomamos um vinho... sabe como é quando tem um vinhozinho... Dormimos mas... ao amanhecer ele começou a perceber... observou-me delicadamente e... quando se deu conta... Olhou pela janela, viu uma tempestade... olhou nos meus olhos bem fundo... viu uma tempestade e sorriu. Disse: “feche os olhos e conte até cinqüenta que tenho um surpresa pra você”. Fechei, contei e quando abri ele não estava mais ali. Antes de poder sentir a perda ouvi um grito e corri para a janela. Ele estava lá, no meio da rua, estatelado no chão após escorregar no chão liso da tempestade que havia recomeçado. Ele levantou os olhos e me viu na janela. Me olhou com pânico. Foi então que resolvi brincar. Fechei um único olho e a chuva parou. Sorri. Seu olhar de pânico cresceu por 4 segundos exatos e então ele voltou a correr. Abri o olho, a chuva recomeçou, ele botou as mãos na cabeça e se ajoelhou no chão... eu desci e lhe entreguei tudo que poderia entregar. Tudo que eu tinha de mais concreto naquele momento. A minha capa de chuva.

Sai de cena. Entra vestida numa capa de chuva. Pendura no fundo do palco


Cena <

Atriz – Rubem... Se por acaso você estiver aqui... se você estiver aqui hoje... e tiver ouvindo essas histórias... eu queria que você soubesse que... eu queria que você soubesse que você pode me ligar se você quiser... mesmo que seja por engano... Se você quiser eu... eu iria adorar...

Cena +

Atriz – (Toca outra vez o telefone. Ela atende.) Fala! Que eu não apenas te escuto como também falo com você! Aliça Anderson, melhor que o CVV, Vinte e quatro horas pronta pra te atender. Boa noite em que eu posso ajudar? O que? (atordoada) Entendi. (Vai até a mesa de som e tira o som. A cena inteira, inclusive a atriz, fica sem som). Atriz Termina de falar com a pessoa que ligou. Pede ao operador de som que aumente o volume. Desliga o telefone e chora desesperadamente).




Cena (

Atriz – O amor não dado é veneno. O amor não dado escorre devagar... como mel. Só que azedo... e venenoso. O amor não dado é cicuta, é um filme “B”, não... “D”. É um filme... V,U,T... É um filme “T”, do tipo violento, sanguinolento,nojento, cheio de excremento. É isso! É um coração cheio de excremento. E o coração vai bombeando o excremento e ele, o excremento, entope e contamina vasos. O amor não dado entope e contamina os vasos. O amor não dado envenena alma e enche o coração de excremento... (para os espectadores) Você. Já pesou seu coração? Já? Pra ver se não tem merda dentro? E se de repente tem? Se de repente já está tudo envenenado? E se então o sangue subir? Pronto! Tá feita a cagada.

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